Especialistas analisam estudo sobre distribuição desigual de tarefas do lar

Segundo pesquisa da Unicef, meninas gastam 40% mais tempo com trabalho doméstico

POR JÉSSICA LAURITZEN / MARIANA ALVIM

Clique aqui para ler a matéria no site do O Globo.

Menina empurra duas crianças menores em carrinho de mão cheio de galões no Iêmen – Divulgação/ Unicef

 

RIO — De geração em geração, meninas de todo o mundo ainda levam na bagagem o peso de assumirem a maior parte das tarefas domésticas por um estereótipo de gênero. E a distribuição desigual em relação aos meninos começa cedo, como mostra um estudo divulgado ontem pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef): entre os 5 e 9 anos, elas gastam 30% mais tempo que eles, por dia, em atividades como cozinhar, limpar a casa, cuidar de membros da família e coletar água e lenha — disparidade que aumenta para mais de 50% entre 10 e 14 anos. No Brasil, a realidade é bem parecida, especialmente em áreas rurais.

— Infelizmente, aquilo que sustenta uma sociedade hierárquica, desigual e patriarcal em termos de gênero são os processos socializadores que orientam a função e o papel que seria de homens e de mulheres, desde o nascimento, como na escolha de cores e tipo de brinquedos. Estamos ainda em um processo de fazer a crítica, debater e tentar desconstruir essas posições tão enraizadas — diz Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) e do Centro do Interesse Feminista e de Gênero (CIFG) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

De acordo com o relatório do Unicef, a situação é mais crítica em nações do Sudeste Asiático, Oriente Médio e Norte da África, sendo que os países Burkina Faso, Iêmen e Somália lideram esse ranking. E a baixa escolaridade é um fator significativo para que este modo de vida se dissemine, sem controle, entre meninas e mulheres, inclusive no Brasil.

— Em um fórum que faço com mulheres do Vale do Jequitinhonha (em Minas Gerais), o relato delas é quase um lamento sobre o quanto essa vida no campo é de ancoragem na casa e no terreno que têm para plantar, restrita a ponto de não saírem para lugar algum. Elas vivem para essas atribuições e têm baixa escolaridade, uma situação geralmente passada de mãe para a filha — frisa Marlise.

IMPACTOS NO DESEMPENHO ESCOLAR

Professora de economia da USP e especialista em bem-estar social, Ana Lucia Kassouf liderou um estudo publicado no mês passado sobre o desempenho de crianças do 5º ao 9º ano de escolas públicas em áreas urbanas. O ponto de partida do artigo, intitulado “The impact of child labor on his/her performance in school” foi a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar, conhecida como Prova Brasil — referentes ao 5º ano, em 2007; e 9º ano, em 2011 —, e suas variáveis quando cruzadas a dados sobre trabalho infantil, em casa ou não.

A análise mostra que, no 5º ano, 40% das meninas trabalham em casa (considerando trabalhar como por uma hora ou mais) contra 31% dos meninos. No 9º ano, a diferença aumenta para 53% das meninas contra 27% dos meninos. O quadro só muda quando se trata de mercado de trabalho: no 5º ano, 14% dos meninos trabalham, contra 6% das meninas e no 9º ano, 21,5% dos meninos trabalham fora de casa, contra 10% das meninas.

— Isso tem um impacto alto no desempenho escolar, além da influência de outros aspectos, como renda e escolaridade dos pais — analisa Ana Lucia.

Considerando as meninas como uma grande população — de 1,1 bilhão com idade menor que 18 anos, no mundo — que corre o risco de ficar para trás no progresso global almejado pela Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, o estudo feito pelo Unicef indica que, em países com dados disponíveis por tipo de tarefa, quase dois terços das meninas de 5 a 14 anos (64%) ajudam cozinhando ou limpando a casa. A segunda tarefa mais comum nesta idade é fazer compras para o lar (50%), seguida por buscar água ou lenha (46%), o que ainda as deixa, em alguns países, sob risco de abusos sexuais; lavagem de roupa (45%); cuidar de outras crianças (43%); e outras tarefas domésticas (31%). Um destaque do relatório é que o trabalho delas é, ainda assim, menos visível e geralmente subvalorizado. Por outro lado, a carga do gênero também pesa do lado masculino, lembra a professora da USP:

— Os meninos ficam vulneráveis a atividades fora de casa, no mercado, na agricultura, no comércio e, em alguma medida, na construção civil.

Igualar tarefas para meninos e meninas passa, no entanto, por um entendimento maior de como se dá o processo de desenvolvimento do cérebro humano. Esse aspecto é defendido pela neuropsicóloga Adriana Fóz, gestora do projeto Cuca Legal, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretora clínica integrativa da Unidade Vila Nova do Hospital Santa Mônica.

— Existe um desenvolvimento que é comum a toda criança, não importa se ela mora na África, na Índia ou no Brasil. Um bebê matura seu cérebro de acordo com o estímulo do ambiente. Até os 12 anos, perdem-se alguns neurônios e recombinam-se outros. Meninas que aprendem a desempenhar tarefas mais pesadas para sua idade assumem mais responsabilidade e podem perder a oportunidade de desenvolver certas habilidades e competências importantes daquela fase. É como se uma janela neurocognitiva, que abre em tempos exatos, se fechasse para elas — afirma Adriana.

PARTICIPAÇÃO NA ROTINA

A neuropsicóloga acredita que, entre 5 e 10 anos, faixa inicial do estudo do Unicef, as crianças devem ser protegidas para que períodos importantes como a primeira infância (até os 7 anos) e a segunda (dos 7 anos até a adolescência) sejam preservados:

— A criança precisa aprender que participar de tarefas como tirar a mesa e deixar a louça limpinha faz parte da rotina da casa. Ela não deve é deixar de estudar e brincar para fazer tarefas domésticas — explica.

Gabriel virou ‘lavador oficial de louças’ da casa – Arquivo pessoal

Para que Gabriel Izaú, de 13 anos, recebesse de bom grado o título de lavador oficial das louças da casa no início deste mês, sua mãe, Gracy Izaú, não precisou se estender em explicações. A ordem veio como resposta ao comentário do menino de que “lavar louça é coisa de mulher e que homem não tem obrigação de fazer serviços domésticos”. Uma foto dele já em ação na pia, postada no Facebook, rendeu comentários a favor e contra a iniciativa da microempresária, que tomou a decisão com o marido, seu “parceiro em todas as tarefas, dentro e fora de casa”, ressalta. O filho caçula, Israel, de 8 anos, também não fugiu das novas regras: passou a recolher a louça que fica na mesa depois das refeições.

— Eu não faço ideia de onde o Gabriel tirou isso porque ele tem bons exemplos em casa. Nem ele sabe explicar, diz que ouviu por aí. O azar dele foi reproduzir isso para mim. Recebi muitas críticas e xingamentos nas redes sociais por minha atitude e mostrei aos meus filhos que é justamente isso que não quero que reproduzam quando forem adultos. Eles já veem as tarefas com naturalidade e agora estão responsáveis por limpar a areia do gato, com o qual brincam sempre. Daqui a alguns anos, vamos começar a cozinhar juntos — diz Gracy.

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